Sunday, November 26, 2006

" Maria Lionça"


"
Galafura, vista da terra chã, parece o talefe do mundo.
Um talefe encardido pelo tempo, mas de sólido granito. Com o céu a servir-lhe de telhado e debruçada sobre o Varosa, que corre ao fundo, no abismo, quem quiser tomar-lhe o bafo tem de subir por um carreiro torto, a pique, cavado na fraga, polido anos a fio pelos socos do Preguiças, o moleiro, e pelas ferraduras do macho que leva pela arreata. Duas horas de penitência.
Lá, é uma rua comprida, de casas com craveiros à janela, duas Quelhas menos alegres, o largo, o cruzeiro, a igreja e uma fonte a jorrar água muito fria. Montanha.
O berço digno de Maria Lionça.Fala-se nela e paira logo no ar um respeito silencioso, uma emoção contida, como quando se ouve tocar a Senhor fora. E nem ler sabia! Bens – os seus dons naturais. Mais nada. Nasceu pobre, viveu pobre, morreu pobre, e os que, por parentesco ou mais chegada convivência, lhe herdaram o pouco bragal, bem sabiam que a grandeza da herança estava apenas no intimo sentido desses panos.
Na recatada alvura que traziam da arca e na regularidade dos fios do linho de que eram feitos, vinha a riqueza duma existência que ia ser a legenda de Galafura.
Quando Deus a levou, num Março que se esforçava por dar remate prazenteiro a três meses de invernia sem paralelo na lembrança dos velhos, Galafura não quis acreditar. Embora a visse estendida no caixão, lívida e serena, aspergia sobre o cadáver a água benta do costume, sem que o seu rude entendimento concebesse o fim daquela vida.
O próprio Prior, tão acostumado à transitória duração terrena, ao ser chamado à pressa para lhe dar a extrema-unção, ungiu-a como se ela fossa a mão dele. Tremia. Até o latim lhe saía da boca aos tropeções, parecendo que punha mais fé no arquejar do peito da moribunda do que na epístola de S. Tiago. Apenas o Dr. Gil, o médico, a tomar-lhe o pulso e a senti-lo fugir, não teve qualquer estremecimento. Receitou secamente óleo canforado e saiu. Mas o Dr. Gil pertencia a outros mundos. Médico municipal em Carrazedo, vinha a quem o chamava, dando a santos e ladrões a mesma tintura de jalapa e a mesma digitalina. Por isso, a insensibilidade que mostrou não teve significação para ninguém.
A rotina do ofício empedernira-lhe os sentimentos. O ele declarar calmamente, já no estribo do cavalo, que não havia nada a fazer, foi como se um vedor afirmasse que a fonte da Corredoura ia secar. Sabia-se de sobejo que a fonte da Corredoura era eterna, por ser um olho marinho.
E assim que a moribunda exalou o último suspiro, e do quarto a Joana Ró deu a notícia, lavada em lágrimas, cá de fora respondeu-lhe um soluço prolongado, que, em vez de embaciar nos espíritos a imagem da Maria Lionça , a clarificava.
E o enterro, no outro dia pela manhã, talvez por causa do ar tépido da primavera que começava e da singeleza das flores campestres que bordavam as relheiras do caminho, pareceu a todos uma romagem voluntária e simples ao cemitério, onde deixavam como uma Salve-rainha pela alma dos defuntos o corpo da Maria Lionça.
Não. Não podia morrer no coração de ninguém uma realidade que em setenta anos fora o sol de Calafura."

(...)

Miguel Torga ( Contos Da Montanha )